Por Luís Benigno
Um sistema alimentar abarca uma complexa rede de elementos (pessoas, insumos, infraestrutura) que envolvem a produção, processamento, transporte, comercialização e consumo de alimentos que irão por consequência interferir e determinar em grande medida o estado nutricional e de saúde dos indivíduos, trazendo efeitos também econômicos e ambientais na sociedade como um todo (OPAS, 2017).
Ao analisarmos o sistema alimentar global podemos enxergar uma grande contradição: segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), nunca antes a humanidade desenvolveu tamanha capacidade técnico-científica e produtiva de alimentos - a produção mundial de alimentos já seria o suficiente para alimentar todo o planeta - mas, ao mesmo tempo, estima-se que até o ano de 2030 o número de pessoas em situação de insegurança alimentar e nutricional exceda 840 milhões de indivíduos (FAO, 2016; FAO, 2020). E ainda, em 2015 foi estimado que 2 bilhões de pessoas no mundo foram afetadas pelo excesso de peso, que é fator de risco para doenças crônicas não transmissíveis (SWINBURN et al, 2019).
No Brasil, a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) 2017-2018 estimou um total de 68,9 milhões de domicílios particulares permanentes no Brasil. Dentre esses, 36,7% domicílios particulares restantes estavam com algum grau de IA. Neste período, a proporção de domicílios em IA leve foi de 24,0%, sendo que 8,1% dos domicílios particulares estavam em IA moderada e 4,6% em IA grave (IBGE, 2O2O)
Um componente essencial para entender o sistema alimentar atual, é compreender que ele é fruto de uma época histórica socialmente determinada, a era do capital que determina o sistema do alimento mercadoria (MACHADO; OLIVEIRA, 2016). Durante a construção da sociedade, existiram diferentes tipos de relações de produção e reprodução da vida, e também de alimentos, que influenciam diretamente em sua forma de organização. Algumas sociedades primitivas como, por exemplo, as formadas por algumas etnias indígenas do Brasil pré colonização, baseavam-se em um modelo de produção voltada ao abastecimento alimentar do núcleo doméstico, caracterizado pelo uso de tecnologia simples, pela ausência de uma complexa divisão do trabalho e pela relativa liberdade na utilização dos recursos (SOUZA, 2002).
Com a acelerada divisão social do trabalho, cada vez menos indivíduos produzem de fato alimento para sua própria subsistência e, conforme esse processo histórico avança, os meios necessários para a produção de alimentos, como a própria terra, concentram-se nas mãos de uma parcela cada vez menor da população. Nesse cenário, os que não dispõem desses meios de produção, têm como alternativa única a venda da sua força de trabalho em troca do salário, usando então parte deste para comprar os alimentos daqueles que os produzem (MARX; ENGELS, 2007).
Nessa dinâmica, os que não possuem dinheiro para trocar por comida, seja em decorrência da pobreza intergeracional, da falta de emprego ou carência de condições básicas de vida, são largados à fome. O alimento, que antes possuía apenas valor de uso, um caráter qualitativo, ou seja cumpria a função de alimentar e nutrir o ser humano, converte-se em mercadoria, que ainda tem valor de uso, mas dispõe também de valor de troca. Esse valor de troca representa um caráter quantitativo, ou seja, a realização do processo de câmbio entre um produto do trabalho humano por outro de mesma natureza (MARX, 2011).
Com o desenvolvimento do modo capitalista de produção, a mercantilização determina em escala crescente o que será produzido, de modo que, o valor de troca - que no desenvolvimento do sistema capitalista pode ser entendido como o lucro a ser obtido pela comercialização do alimento - representa o principal interesse dos latifundiários e da grande indústria. Como afirma Giannotti (2013):
O valor de troca depende do valor de uso, mas o nega, bloqueia seu exercício, coloca-o entre parênteses. Para chegar até o consumo, a fruta deixa de ser comida para se consumir como objeto de troca, objeto cuja produção foi financiada em vista de sua comercialização. ( GIANNOTTI, 2013, p. 92).
Ou seja o sistema alimentar dentro do modo de produção capitalista possui enquanto elemento fundamental a produção dos alimentos para a geração do lucro e a apropriação e acumulação privada da riqueza pelos grandes proprietários desse ramo (latifundiários e industriais) e não objetivamente alimentar pessoas.
Por isso o sistema alimentar atual se afunda nessa enorme contradição em que deixa centenas de milhões de pessoas a penúria da fome e, ao mesmo tempo, produz alimentos que não tem enquanto principal objetivo oferecer padrões alimentares que supram demandas nutricionais, de saúde e qualidade de vida.
O sistema alimentar é efetivamente cada vez mais dominado por monopólios de empresas transnacionais que têm como objetivo obter lucro através produção e comercialização principalmente de produtos ultraprocessados (MONTEIRO et al, 2013). Tais empresas através do seu imenso poder econômico atuam produzindo alimentos de alta palatabilidade, envolvendo altas quantidades de gordura, sal e açúcar para atrair o consumidor. Para além disso, utilizar campanhas de marketing agressivas moldando as subjetividades da sociedade para o consumo desses produtos, os colocando inclusive enquanto valoramento social simbólico.
Sabe-se que o consumo de ultraprocessados vêm crescendo em diversos países e são associados a diversas doenças crônicas não transmissíveis impactando diretamente na qualidade de vida da população (LAWRENCE; BAKER, 2019).
É fato também, o quanto as empresas multinacionais do ramo da alimentação e latifundiários utilizam do poder econômico para influencia tanto diretamente, tendo representantes por exemplo no congresso ou indiretamente através de financiamento de campanha e suborno para votação de determinadas leis. Como afirma Azevedo (2019):
São atividades políticas legais, não consideradas ações de suborno, designadas para influenciar o congresso, as agências federais e o governo, no sentido de proporem leis que beneficiem as companhias alimentares e os grupos de commodities agrícolas. Os lobistas oferecem conselhos técnicos apoiados pela pesquisa científica e propõem legislação, regulação e práticas de educação, sem serem, entretanto, legalmente eleitos pelo voto dos cidadãos (AZEVEDO, 2019, p. 54).
Um elemento fundamental também a se considerar é o acesso, o domínio das empresas transnacionais impactam também de forma determinante no ambiente alimentar dos indivíduos, garantindo que em cada canto do mundo seus produtos ultraprocessados cheguem nas mãos do consumidor, e consequentemente dificultando a disponibilidade a alimentos in natura ou minimamente processados, para a análise de tal problemática as categorias de desertos e pântanos alimentares se fazem extremamente relevantes. Os desertos alimentares são locais onde o acesso a alimentos in natura ou minimamente processados é escasso ou impossível. Já os pântanos são locais em que se predomina a disponibilidade de produtos altamente calóricos com poucos nutrientes. Um estudo no Município de Jundiaí em São Paulo buscando avaliar a disponibilidade e de alimentos nas áreas urbanas identificou que as áreas de média e baixa renda, há 22 vezes mais estabelecimentos que priorizam a venda de ultraprocessados do que os que vendem, primariamente, alimentos in natura (BORGES; CABRAL-MIRANDA; JAIME, 2018).
Quando analisamos a agricultura do sistema alimentar, principalmente em países periféricos como o Brasil, existe historicamente uma relação de concentração das terras nas mãos de poucos, processo esse que deixa milhões de pessoas sem moradia e meios necessários para a produção de alimentos, impedindo assim uma socialização do que é produzido do campo e o gerenciamento democrático da produção de alimentos que tenha como objetivo de alimentar a população. Em um relatório da Oxfam (2016), confederação internacional que luta contra a pobreza e a desigualdade em mais de 90 países, observou que no Brasil, 45% da área rural está nas mãos de menos de 0,91% das grandes propriedades.
Essas faixas enormes de terras, os latifúndios, na mão de 1% dos proprietários é um dos elementos que caracteriza o modelo agro hegemônico no Brasil, fixado na produção de commodities voltadas para exportação. Para se ter uma ideia segunda o CONAB (2020),Companhia Nacional de Abastecimento, a área plantada de soja no brasil no levantamento da safra de junho de 2020 é de 36.843,6 milhões de hectares de soja, sendo que a área plantada brasileira nesta safra está estimada em 65.558,5 milhões de hectares, ou seja mais da metade das áreas de plantio no território nacional é dirigida apenas para produção de soja.
Além das consequências ambientais terríveis desse sistema alimentar baseado na monocultura, frequentemente esse modelo se associa ao uso intensivo de agrotóxicos, o Brasil consome cerca de 20% dos agrotóxicos produzidos mundialmente, o que leva à degradação ambiental, e um risco a saúde dos trabalhadores do campo e da cidade (GABERELL; HOINKES, 2019).
O resultado desse modelo, produzido em monoculturas, que depende de grandes extensões de terra, gera além do uso de agrotóxicos, também resulta em uso abusivo de fertilizantes químicos, sementes transgênicas, antibióticos, intensa mecanização do processo produtivo impactando no desemprego, alto consumo de água e de combustíveis.
Em relação ao transporte e comercialização dos alimentos, o modelo hegemônico se dá através de circuitos longos, isto é circuitos em que o alimento é produzido em locais distantes do consumidor, por consequência transportado em longas distâncias, e de forma em que não se existe uma relação de reconhecimento mínima entre produtor e consumidor. Por si só isso gera a necessidade de transportes por longas distância que requerem estradas de ferro, portos, navios, sem considerar o enorme gasto de energia e consequentemente maior liberação de Co2, no Brasil também como o transporte se dá de forma majoritária por rodovias o impacto ambiental é considerável. Se por um lado os circuitos longos permitem um acesso a diferentes produtos para consumidores de diferentes locais, de outro lado, esse acesso pode se dar por meio de produtos ultraprocessados, com forte carga de aditivos químicos e com impacto na redução da base produtiva alimentar de diferentes locais, interferindo inclusive nas culturas alimentares regionais (ROVER; RIEPE, 2016)
Transitar para sistemas alimentares com prioridade em circuitos curtos, com a busca pela aproximação dos locais de produção com o de consumo de bens e serviços, uma estruturação logística que poupe esforços desnecessários como: redes de transporte, energia, combustível, embalagens, intensificação de tráfegos, se faz essencial para a diminuição de impactos ambientais. Além disso, ao priorizar os circuitos curtos se recupera a relação por vezes alienada entre produtor e consumidor, valoriza a agricultura familiar e oferece uma recompensa socialmente mais justa aos trabalhadores e trabalhadoras do campo sem intermediários que captam parte do lucro.
Ao longo do texto podemos observar as tamanhas contradições do atual sistema alimentar mundial e alguns impactos dele no Brasil. Este que é fruto de um momento historicamente determinado, não foi sempre assim e nem sempre será, cabe a nós compreendê-lo na sua totalidade e buscar superá-lo, rumo a um sistema alimentar sustentável que passa pela ampla socialização da produção e participação popular, garantindo assim a realização plena do Direito Humano à Alimentação Adequada e Saudável para todes.
REFERÊNCIAS
AZEVEDO, E. Lobbies alimentares. Revista Ingesta, v. 1, n. 1, p. 53-67, 28 mar. 2019.
BORGES, Camila Aparecida; CABRAL-MIRANDA, William; JAIME, Patricia Constante. Urban Food Sources and the Challenges of Food Availability According to the Brazilian Dietary Guidelines Recommendations. Sustainability , [s. l.], v. 10, n. 12, 6 dez. 2018.
CONAB. Acompanhamento da safra brasileira: Nono levantamento JUNHO 2020. Brasília: [s. n.], 2020. 1-66 p. v. 7.
FAO; IFAD; UNICEF; WFP; WHO. The State of Food Security and Nutrition in the World 2016: Transforming food systems for affordable healthy diets. Roma, Itália: [s. n.], 2016. 320 p. ISBN 978-92-5-132901-6. Disponível em: http://www.fao.org/3/ca9692en/CA9692EN.pdf. Acesso em: 17 jul. 2020
FAO; IFAD; UNICEF; WFP; WHO. The State of Food Security and Nutrition in the World 2020: Transforming food systems for affordable healthy diets. Roma, Itália: [s. n.], 2020. 320 p. ISBN 978-92-5-132901-6. Disponível em: http://www.fao.org/3/ca9692en/CA9692EN.pdf. Acesso em: 17 jul. 2020
GABERELL , Laurent; HOINKES, Carla. Lucros altamente perigosos: Como a Syngenta ganha bilhões vendendo agrotóxicos nocivos. Um Relatório da Public Eye.. Brasília: [s. n.], 2019.
GIANNOTTI, José Arthur. Considerações sobre o metódo. In: MARX, Karl. O capital: Crítica da economia política. 2. ed. Brasil: Boitempo editorial, 2013. v. 1, p. 92. ISBN 9788575595480.
IBGE. Pesquisa de orçamentos familiares 2017-2018: análise da segurança alimentar no Brasil / IBGE, Coordenação de Trabalho e Rendimento. Rio de Janeiro: [s. n.], 2020. 59 p. ISBN 9786587201207.
LAWRENCE, Mark; BAKER, Phillip. Ultra-processed food and adverse health outcomes. BMJ. 2019 May 29;365:l2289. doi: 10.1136/bmj.l2289. PMID: 31142449.
MACHADO, Priscila Pereira; OLIVEIRA, Nádia Rosana Fernandes de; MENDES, Áquilas Nogueira. O indigesto sistema do alimento mercadoria. Saude soc., São Paulo , v. 25, n. 2, p. 505-515, Jun. 2016.
MARX, Karl. Seção 1: Mercadoria e dinheiro. In: MARX, Karl. O capital: Crítica da economia política. 2. ed. Brasil: Boitempo editorial, 2011. v. 1, cap. Capítulo 1- A mercadoria, ISBN 9788575595480.
MONTEIRO, C.A; MOUBARAC, J-C; CANNON, G.; NG, S.W; POPKIN, B. Ultra-processed Products Are Becoming Dominant in the Global Food System. Obesity Reviews, [s. l.], p. 21-28, 14 jul. 2013.
Organização Pan-Americana da Saúde. Sistemas alimentares e nutrição: a experiência brasileira para enfrentar todas as formas de má nutrição. Brasília, DF: OPAS; 2017
OXFAM. Terrenos da desigualdade: Terra, agricultura e desigualdades no Brasil rural. [S. l.: s. n.], 2016.
ROVER, Oscar José; RIEPE, Ademir de Jesus. A relação entre comercialização de alimentos e princípios agroecológicos na rede de cooperativas de reforma agrária do Paraná/Brasi. Desenvolv. Meio Ambiente, Rio de Janeiro, v. 38, p. 663-682, Agosto 2015.
SOUZA, José Otávio Catafesto de. O sistema econômico nas sociedades indígenas Guarani pré-coloniais. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 8, n. 18, p. 211-253, Dez. 2002.
SWINBURN, Boyd A et al. “The Global Syndemic of Obesity, Undernutrition, and Climate Change: The Lancet Commission report.” Lancet (London, England) vol. 393,10173 (2019): 791-846. doi:10.1016/S0140-6736(18)32822-8
Excelente texto !